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>>> É sempre assim... não me dou conta de pensar com a mínima razão possível. E se as coisas saem da órbita, já deliro. Não tive pai presente por toda a vida para me ensinar a agir como homem; também não sei agir como mulheres. E se minha mãe tentou me passar um pouco de segurança, errou quando me excedeu de cuidados. Coitada! Achou que criar um filho é dividir-se ao meio e dobrar-se para ser o pai e a mãe.
Liguei para ela quando entendi que havia um cara com meu sobrenome, com um nome similar ao meu, com uma identidade suspeita. (Sim, suspeita, já que para mim tudo passava a ser alvo de suspeita, até eu.). Bem, como não me atendeu, desisti.
Retornei a ligação para aquele número. Conversei com o Pedro e as dúvidas só aumentaram. Em nada adiantou já que tanto para mim quanto para ele, tudo parecia uma brincadeira, um trote... eu até queria que fosse, eu disse, mas não é. Desliguei...
Há coisas que não se resolvem à distância. Eu não sabia de nada, sempre fui enganado. Por quem? Eu queria saber... Estava muito perturbado assim que descobri. Aliás, assim que não descobri minha identidade, minha origem. Não sei ainda o que é pior: aceitar que os outros nos coloquem em caixinhas ou descobrir que não há uma sequer caixinha para entrar.
Depois de muito pensar recostado à porta do banheiro, olhando no espelho, deitei-me na cama gelada e apaguei. Geralmente, não costumo dormir com facilidade depois de um problema. No entanto, acho que o próprio desgaste emocional, o susto, sei lá, me fizeram adormecer até tarde do dia seguinte.
Acordei com o toque do celular. Uma mensagem: Oi,cara, queria conversar novamente. Não sei o que está acontecendo. Estou confuso. Me retorne assim que puder. Pedro.
Retornei... claro! Havia sido grosseiro ao desligar subitamente na noite anterior. Eu sentia um misto de medo e vontade, de raiva e alegria, uma angústia ao certo. Queria que 250 km fossem percorridos em 2 minutos.
“Oi, onde você está? Ok, chego aí em dois minutos.”
Odeio escadas rolantes com excesso de pessoas, elas parecem paradas. Sempre gostei de multidão para olhar, nunca para me sentir mais um perdido no meio dela. E agora eram muitas as multidões, gente de todas as cores e os flashes de sol seco entre espelhos e relógios gigantescos nos braços de mulheres reluzindo para mim. Mãos entre os olhos. No meio da avenida, me vi um alvo... era tudo o que eu conseguia ser naquele instante, menos alguém que se conhecesse de verdade. Eu não me conhecia. Queria saber, queria me ver menos ofegante... menos apressado, mas a pressa me levaria à perfeição.
Adiantei os passos e ainda cheguei a chocar contra algumas pessoas. Mas, uma batalha já havia vencido: a multidão se transformara em apenas alguns transeuntes perdidos como eu na Praça da Liberdade. Ironia!
Passos leves agora... ploc, ploc, ploc... ploc.
“Oi”, eu falei, depois de mais de um minuto parados sem entendermos tamanha contemplação. “Estranho”, ele disse enquanto nos mantínhamos abraçados.
Chorei, mas evitei que visse. Deve ter visto, impossível! Afastei-me um pouco e tive a sensação de que eu havia me abraçado como quem tenta cumprir o gesto consigo mesmo diante do espelho.
“Quem é você? Por que é tão igual a mim? Como pode ser tão parecido a mim?”
“Não sei... há anos venho tentando descobrir... há anos tento entender o sentido das coisas, a coerência da vida. E agora olho pra você e acho que começo a me ver por outro ângulo, não mais por dentro. Você nunca se perguntou quem você é?”
“Não, nunca precisei, Petro. Mas agora continuo mais confuso. Temos os mesmos 28, o mesmo sobrenome, prenomes similares, a mesma cara...e agora as mesmas dúvidas. Somos gêmeos?”
“Não sei! Desconfio do óbvio. Bem, não vejo outra saída senão agora procuramos por Rafael Lins. Ele deve nos explicar.”
“Como assim Rafael Lins? Quem é Rafael Lins para você?”
“Rafael Lins é alguém por quem venho procurando faz algum tempo, acho que ele é meu pai. Foi ele quem deixou o seu número em meu apartamento antes de ir embora, há pouco mais de um ano.”
“Não, não pode ser! Rafael Lins te conhece? Onde ele está? Se for o mesmo Rafael em quem estou pensando, ele é... ele é um amigo de infância... e... faz tempo que não o vejo, nem sei por onde anda. Temos a mesma idade também. Ele não pode ser seu pai, tem a nossa idade, cara!”
O céu volta contra mim, esconde-se por trás das nuvens escuras e eu mergulho numa imensidão de dúvidas outra vez. Apenas uma certeza: a vida fica menos coerente quando tentamos desvendar os seus segredos. Eu não desisto...